saramago/o-caderno
Resumo curto
Entre setembro de 2008 e março de 2009, José Saramago registra reflexões sobre política, cultura e humanidade em textos publicados originalmente em um blog. Seu conteúdo é inspirado em eventos correntes e personalidades influentes, discutindo temas como guerras, religião, economia e direitos humanos.
Em seus escritos, Saramago critica líderes políticos como George Bush e Silvio Berlusconi, condena a violência social e expressa ceticismo quanto à democracia atual, apontando que vivemos numa plutocracia dominada por interesses financeiros. Analisa relações entre religião e conflitos, manifestando postura crítica à Igreja Católica, e enfatiza preocupações sobre a crise financeira global.
Ele também homenageia importantes figuras culturais e literárias, como Jorge Amado, Chico Buarque e Baltasar Garzón, além de refletir sobre aspectos pessoais, como seu aniversário e experiências cotidianas vividas ao lado de Pilar.
Em dezembro, relembra um momento decisivo em sua vida, ocorrido no ano anterior, bem próximo do Natal.
'Morri' na noite de 22 de Dezembro de 2007, às quatro horas da madrugada, para 'ressuscitar' só nove horas depois. Um colapso orgânico total, uma paragem das funções do corpo, levaram-me ao último limiar da vida.
Saramago encerra suas reflexões em março com elogios ao escritor Gonçalo M. Tavares e uma homenagem emocionada à esposa Pilar, destacando sua inteligência e essencial papel em sua trajetória pessoal e profissional.
Resumo detalhado por meses
A divisão em seções temáticas dentro de cada mês é editorial.
Setembro de 2008
Reflexões iniciais e comentários políticos
O livro inicia com uma dedicatória aos colaboradores da Fundação José Saramago, especialmente a Sérgio Letria e Javier Muñoz, responsáveis por receber os textos que o autor enviava para o blog. Saramago explica que a ideia do blog surgiu por sugestão de Pilar, sua esposa, que lhe disse: "Tens um trabalho, escreve um blog".
No primeiro texto, datado de 15 de setembro, Saramago compartilha um artigo antigo sobre Lisboa, descrevendo-a como uma cidade que mudou de nome ao longo dos séculos e refletindo sobre sua história e identidade. Nos dias seguintes, comenta sobre o pedido de perdão da Igreja Anglicana a Charles Darwin e critica duramente George Bush, chamando-o de "o mais pequeno" dos presidentes americanos e acusando-o de mentir para fazer a guerra no Iraque.
Comentários sociais e culturais
Em 19 de setembro, Saramago critica Silvio Berlusconi, primeiro-ministro italiano, por sua riqueza e corrupção. No dia seguinte, comenta sobre a busca pelos restos mortais de Federico García Lorca, enterrado como milhares de outros no barranco de Viznar durante a Guerra Civil Espanhola. O autor expressa sua opinião de que os restos do poeta deveriam ser exumados, apesar da oposição da família.
No dia 22, Saramago ironiza José María Aznar por negar o aquecimento global, chamando-o de "oráculo". Nos dias seguintes, reflete sobre biografias e autobiografias, sugerindo que todas as palavras e gestos humanos podem ser entendidos como peças de uma autobiografia não intencional. Também aborda a importância dos divórcios na multiplicação das bibliotecas e discute a natureza das aparências versus realidade.
Creio que todas as palavras que vamos pronunciando, todos os movimentos e gestos, concluídos ou somente esboçados, podem ser entendidos como peças soltas de uma autobiografia não intencional.
O mês termina com reflexões sobre a democracia real versus a plutocracia em que vivemos e sobre a natureza da esperança e das utopias, que Saramago vê como formas de pacificar os descontentes sem oferecer mudanças reais.
Outubro de 2008
Comentários políticos e sociais
Em 1º de outubro, Saramago questiona onde está a esquerda política, lamentando sua passividade diante da crise econômica mundial. Ele relembra uma declaração provocativa que fez anos antes: "A esquerda não tem nem uma puta ideia do mundo em que vive", e observa que essa afirmação não gerou reação alguma, confirmando sua crítica.
A esquerda não pensa, não age, não arrisca um passo. Passou-se o que se passou depois, até hoje, e a esquerda, cobardemente, continua a não pensar, a não agir, a não arriscar um passo.
No dia 2, critica a violência crescente na sociedade, especialmente entre adolescentes e seus pais. Nos dias seguintes, reflete sobre a democracia, argumentando que uma democracia política sem democracia econômica e cultural é insuficiente. Critica também a Igreja Católica e o Papa Ratzinger por sua hipocrisia e tentativas de influenciar a política.
Em 9 de outubro, Saramago questiona o que Deus pensaria de Ratzinger e da Igreja Católica, afirmando que "Deus é o silêncio do universo e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio", uma frase que diz ter sido frequentemente citada por teólogos espanhóis.
Deus é o silêncio do universo, e o homem o grito que dá sentido a esse silêncio. Está nos Cadernos de Lanzarote e tem sido frequentemente citado por teólogos do país vizinho que tiveram a bondade de me ler.
Figuras literárias e culturais
Em 13 de outubro, Saramago homenageia Eduardo Lourenço, relembrando um episódio em que o ensaísta apresentou seu romance "Todos os nomes" mesmo tendo perdido o discurso preparado. Nos dias seguintes, dedica textos a Jorge Amado, destacando como o escritor brasileiro revelou ao mundo a complexidade étnica e cultural do Brasil, e a Carlos Fuentes, criador da expressão "território de La Mancha".
No dia 16, menciona Federico Mayor Zaragoza e seu livro "En pie de paz", elogiando-o por usar a cultura e a educação como instrumentos fundamentais para a solução de problemas. No dia seguinte, reflete sobre Deus como problema, argumentando que as religiões são fontes de divisão e conflito, e que seria benéfico discutir abertamente essa questão.
Não tenho dúvidas de que este arrazoado, logo a começar pelo título, irá obrar o prodígio de pôr de acordo, ao menos por esta vez, os dois irredutíveis irmãos inimigos que se chamam islamismo e cristianismo.
Nos dias 22 a 24, dedica textos a Chico Buarque de Holanda, elogiando seu romance "Budapeste", ao juiz Baltasar Garzón, defensor dos direitos humanos, e a José Luis Sampedro, economista e escritor que questionou por que o dinheiro aparece rapidamente para resgatar bancos, mas não para combater a fome ou a AIDS.
Crises econômicas e questões sociais
Em 20 de outubro, Saramago publica um texto sobre a crise financeira mundial, chamando-a de "crime (financeiro) contra a humanidade". Ele questiona por que os responsáveis pela crise não são julgados e condenados, enquanto milhões de pessoas perdem seus empregos e economias.
O que está a passar-se é, em todos os aspectos, um crime contra a humanidade e é desta perspectiva que deveria ser objecto de análise em todos os foros públicos e em todas as consciências.
No dia 21, reflete sobre constituições políticas como declarações de intenções que raramente se concretizam. No dia 27, expressa admiração por Rita Levi-Montalcini, ganhadora do Prêmio Nobel de Medicina, que aos quase 100 anos declarou: "É ridícula a obsessão do envelhecimento. O meu cérebro é melhor agora do que foi quando eu era jovem".
No dia 28, Saramago conta a história da adaptação de seu romance "Ensaio sobre a cegueira" para o cinema por Fernando Meirelles. Inicialmente, ele havia recusado ceder os direitos, mas anos depois aceitou o projeto quando apresentado por produtores canadenses. Pilar observou que o livro antecipou os efeitos da crise econômica: "As pessoas, desesperadas, correndo por Wall Street, de banco em banco antes que o dinheiro se acabe, não são outras que as que se movem, cegas, sem rumo, no romance e agora no filme".
O mês termina com a publicação de um manifesto coletivo intitulado "Novo capitalismo?", criticando o resgate dos bancos com dinheiro público e pedindo uma nova ordem econômica mundial baseada na justiça social.
Novembro de 2008
Reflexões sobre verdade e justiça
Em 3 de novembro, Saramago reflete sobre a relação entre política e verdade, citando um político português que declarou que "a política é, em primeiro lugar, a arte de não dizer a verdade". No dia seguinte, revela que em 1975, durante a Revolução dos Cravos, o governo espanhol de Arias Navarro considerou invadir Portugal, vendo-o como uma ameaça comunista.
No dia 5, Saramago sugere a Barack Obama, recém-eleito presidente dos Estados Unidos, que sua primeira medida deveria ser desmontar a base militar de Guantánamo e acabar com o bloqueio a Cuba. No dia 9, corrige um erro do dia anterior: havia chamado Rosa Parks de Rosa Banks ao mencionar a mulher que se recusou a ceder seu lugar a um branco em um ônibus em Montgomery, Alabama, em 1955.
No dia 10, publica uma crônica antiga intitulada "Receita para matar um homem", em homenagem a Martin Luther King. No dia 11, reflete sobre o ceticismo, argumentando que não é apenas uma doença da velhice, mas uma resposta às injustiças do mundo.
Observações pessoais e vida cotidiana
Em 13 de novembro, Saramago relata uma visita à Rádio Clube Português, onde os apresentadores estavam com os olhos vendados em homenagem ao seu romance "Ensaio sobre a cegueira". No dia 16, comenta seu aniversário de 86 anos, refletindo sobre o valor de suas palavras e opiniões.
Intento ser, à minha maneira, um estóico prático, mas a indiferença como condição de felicidade nunca teve lugar na minha vida, e se é certo que procuro obstinadamente o sossego do espírito, certo é também que não me libertei nem pretendo libertar-me das paixões.
Nos dias seguintes, Saramago viaja ao Brasil para apresentar seu livro "A viagem do elefante". Relata a tragédia em Santa Catarina, onde chuvas torrenciais causaram dezenas de mortes, e descreve visitas a livrarias brasileiras, elogiando especialmente a Livraria Cultura em São Paulo e o apoio do governo brasileiro à indústria livreira, em contraste com Portugal.
Dezembro de 2008
Figuras e eventos culturais
Em 1º de dezembro, Saramago continua suas reflexões sobre as diferenças entre as livrarias brasileiras e portuguesas. No dia 3, menciona que seu livro "A viagem do elefante" será apresentado em Belém, local de onde o elefante real partiu no século XVI até Viena.
No dia 4, elogia Roberto Saviano, autor de um livro de denúncia contra a camorra italiana, que vive sob ameaça de morte. No dia 9, comenta sobre o documentário "Calle Santa Fe" de Carmen Castillo, sobre a ditadura de Pinochet no Chile. No dia 11, relata a visita do juiz Baltasar Garzón a Lisboa para falar sobre direitos humanos, Chile e Guantánamo.
No dia 15, menciona a inauguração de um monumento a Jorge Luis Borges em Lisboa, com a presença de María Kodama. No dia 16, comenta o incidente em que um jornalista iraquiano atirou sapatos contra o presidente George Bush durante uma coletiva de imprensa, considerando o gesto uma forma eficaz de expressar desprezo.
Reflexões de fim de ano
Em 17 de dezembro, Saramago reflete sobre o poder das palavras, afirmando que aprende com as palavras que diz. No dia 23, relembra o grave colapso de saúde que sofreu exatamente um ano antes, em 22 de dezembro de 2007, quando "morreu" por nove horas antes de ser reanimado.
No dia 25, faz uma reflexão irônica sobre o Natal e a Última Ceia, sugerindo que as ceias natalícias são cópias simbólicas do ritual cristão. No dia 31, critica Israel pelos ataques à Faixa de Gaza, questionando se Barack Obama manterá a "relação especial" dos EUA com Israel.
Janeiro de 2009
Acontecimentos políticos e esperança
Em 5 de janeiro, Saramago questiona o valor de seus comentários no blog, perguntando-se se fizeram alguma diferença no mundo. No dia 6, critica o presidente francês Nicolas Sarkozy por sua hipocrisia ao condenar o Hamas pelos ataques a Israel, mas não criticar com igual veemência os crimes de guerra israelenses contra civis palestinos.
No dia 7, Saramago relembra seu encontro com o subcomandante Marcos, líder zapatista no México, a quem admira profundamente. Conta que Marcos lhe disse ao ouvido "Não nos abandones", ao que respondeu: "Teria que abandonar-me a mim mesmo para que isso sucedesse". Lamenta o silêncio recente de Marcos e pede que ele não se cale.
Nos dias 20 e 21, Saramago comenta a posse de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos, expressando esperança, mas também cautela. Questiona de onde surgiu este homem que fala de valores e responsabilidade em um tempo cínico e desesperançado, e sugere que sua mensagem é de que "outro mundo é possível".
Interrogar as palavras é o destino de quem escreve. Um artigo? Uma crónica? Um livro? Pois seja, já sabemos que Moisés não responderá. Abraço-me pois às palavras que escrevi, desejo-lhes longa vida e recomeço a escrita no ponto em que tinha parado.
Direitos humanos e conflitos
Em 8 de janeiro, Saramago republica um artigo antigo intitulado "Das pedras de David aos tanques de Golias", criticando as ações de Israel contra os palestinos. No dia 11, expressa apoio a uma manifestação em Madrid contra a ação militar israelense em Gaza, e no dia 12, compara a situação dos palestinos ao Holocausto, argumentando que os israelenses estão imitando seus carrascos.
Fevereiro de 2009
Questões econômicas e políticas
Em 2 de fevereiro, Saramago critica um procurador público de Badalona que pediu um ano e meio de prisão para um mendigo que tentou roubar metade de uma baguete, comparando o caso com Jean Valjean de "Os Miseráveis". No dia 3, comenta sobre a reunião de Davos, afirmando que nunca houve ideias reais saindo dali, apenas a defesa do pensamento único neoliberal.
No dia 4, critica os banqueiros que, mesmo após serem salvos com dinheiro público, resistem a emprestar dinheiro para salvar empresas e empregos. No dia 5, condena o comportamento ambíguo do Vaticano na questão dos bispos seguidores de Lefebvre, primeiro excomungados e depois reabilitados pelo Papa Ratzinger, apesar de um deles negar o Holocausto.
Justiça social e cultura
Em 9 de fevereiro, Saramago critica duramente o Vaticano e a Igreja Católica, comparando os desfiles de cardeais e bispos com o desfile de moda eclesiástica do filme "Oito e meio" de Fellini. No dia 10, relata emocionado como o deputado colombiano Sigifredo López, libertado após sete anos de sequestro pelas FARC, comparou a senadora Piedad Córdoba à mulher do médico do "Ensaio sobre a cegueira".
No dia 26, Saramago escreve sobre seu cão Camões, que está com 14 anos e apresentou problemas de saúde, mas se recuperou. Menciona que o cão prometido por Obama às filhas será um cão-d'água português, o que considera "um importante trunfo diplomático" para Portugal.
Março de 2009
Reflexões finais sobre sociedade e democracia
Em 2 de março, Saramago elogia o escritor português Gonçalo M. Tavares, prevendo que ele ganhará o Prêmio Nobel em trinta anos ou menos. No dia 4, reflete sobre sua frase do "Ensaio sobre a cegueira": "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara", destacando a urgência de combater a cegueira metafórica no mundo.
Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo, memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares.
No dia 9, comenta o Dia Internacional da Mulher, lamentando que metade da população mundial ainda precise sair às ruas para reivindicar direitos óbvios. No dia 15, o último texto do livro, Saramago dedica palavras de profundo reconhecimento a Pilar, sua esposa, destacando sua inteligência, capacidade criativa e papel fundamental na criação e manutenção da Fundação José Saramago.
Não é em democracia que vivemos, mas sim numa plutocracia que deixou de ser local e próxima para tornar-se universal e inacessível. Por definição, o poder democrático terá de ser sempre provisório e conjuntural.