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Fonte: Wikisum
Aviso: Este resumo foi gerado por IA, portanto pode conter erros.
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Ensaio Sobre a Lucidez
2004
Resumo do romance
O original lê-se em ~614 min
Microresumo
Habitantes votaram em branco causando crise. Governo abandonou a cidade sitiada, população resistiu calmamente. Falsa culpada foi investigada, injustamente acusada e assassinada a tiro pelo governo.

Resumo curto

Numa cidade não identificada, durante eleições municipais marcadas por um temporal, a afluência às urnas foi inicialmente reduzida. Surpreendentemente, após as quatro da tarde, milhares de cidadãos dirigiram-se simultaneamente para votar, prolongando o período eleitoral. O resultado foi chocante: quase todos os votos foram em branco, deixando apenas uma pequena percentagem válidos.

Esta situação provocou perplexidade e uma repetição eleitoral no domingo seguinte. Apesar de vigilância intensa e intimidação oficial, a nova votação produziu resultados ainda mais extremos, aumentando a maioria dos votos em branco. O governo declarou estado de exceção e iniciou interrogatórios, tentando identificar responsáveis. Apesar da pressão, os interrogados não revelaram nada.

Fracassadas as investigações, o governo endureceu medidas, declarou estado de sítio, e finalmente decidiu retirar-se da capital, prevendo o caos. Contrariando as expectativas oficiais, os habitantes mantiveram a ordem. Em seguida a essa retirada, ocorreram ataques violentos atribuídos pelo governo aos defensores dos votos em branco.

As autoridades acusaram como principal responsável uma mulher que, quatro anos antes, fora a única a não cegar numa estranha epidemia de cegueira branca. Apesar das investigações revelarem sua inocência, o governo insistiu em culpá-la. Um comissário que confirmou sua inocência foi assassinado por agentes do governo. Pouco depois, enquanto indo à varanda, a mulher foi igualmente assassinada:

A mulher aproxima-se da grade de ferro, põe-lhe as mãos em cima e sente a frescura do metal. Não podemos perguntar-lhe se ouviu os dois tiros sucessivos, jaz morta no chão e o sangue desliza e goteja para a varanda de baixo.

Resumo detalhado

A divisão em capítulos é editorial.

Eleições municipais em dia de temporal

Num dia de eleições municipais marcado por um temporal incessante, o presidente da mesa da assembleia eleitoral número catorze chegou encharcado e esbaforido ao local de voto, queixando-se das condições climatéricas adversas.

Mau tempo para votar, queixou-se o presidente da mesa da assembleia eleitoral número catorze depois de fechar com violência o guarda-chuva empapado e despir uma gabardina que de pouco lhe havia servido...

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Presidente da mesa da assembleia eleitoral número catorze — homem; presidente de uma assembleia eleitoral; tenta manter a imparcialidade e a calma perante a situação invulgar das eleições; preocupado com a falta de eleitores.

O secretário aguardava-o, informando que ainda faltava o suplente do presidente, mas estavam dentro do horário. Na sala de votação, o presidente cumprimentou os escrutinadores e os delegados dos partidos – p.d.m. (partido do meio), p.d.d. (partido da direita) e p.d.e. (partido da esquerda) – mantendo uma estrita imparcialidade. O delegado do p.d.m. previu uma abstenção altíssima devido à chuva incessante, enquanto o delegado do p.d.d. expressou confiança no espírito cívico dos cidadãos. O delegado do p.d.e. preparava-se para manifestar otimismo quando o suplente da presidência chegou, completando a mesa.

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Secretário (da mesa) — homem; secretário da mesa eleitoral n.º 14; prático, irónico; sugere contactar o ministério; tem uma esposa que vota à tarde; demonstra iniciativa.
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Delegado do partido do meio (p.d.m.) — homem; representante partidário na mesa eleitoral; pragmático e pessimista quanto à abstenção; comenta a situação eleitoral.
🧐
Delegado do partido da direita (p.d.d.) — homem; representante partidário na mesa eleitoral; cauteloso, formal, defensor do civismo e da democracia; protesta contra a ironia do secretário.
🤔
Delegado do partido da esquerda (p.d.e.) — homem; representante partidário na mesa eleitoral; inicialmente otimista (em pensamento), depois calado e preocupado com os resultados do seu partido.

A espera pelos eleitores e a baixa afluência inicial

A mesa foi constituída e o edital afixado no interior do edifício para protegê-lo da chuva, com a concordância de todos, embora o delegado do p.d.d. pedisse que a decisão constasse na ata. O presidente verificou a câmara de voto e os cadernos de recenseamento, que estavam em ordem. A urna foi exibida vazia, mas não havia eleitores presentes para testemunhar. Os onze membros da mesa e delegados votaram, inaugurando a urna.

Passado algum tempo sem a chegada de eleitores, o presidente pediu a um vogal que verificasse a entrada. O vogal voltou ensopado, confirmando a ausência total de votantes. O delegado do p.d.m. reiterou a sua previsão de abstenção massiva, enquanto o do p.d.d. sugeriu que os eleitores esperavam o tempo melhorar. O secretário propôs contactar o ministério para saber da situação noutras assembleias.

O delegado do p.d.d. protestou veementemente contra o tom jocoso do secretário, mas o presidente interveio, apaziguando a situação e pedindo moderação. Concordando com a sugestão do secretário, o presidente ligou para o ministério. A resposta foi de perplexidade: a situação era semelhante em quase toda a cidade, com afluência reduzidíssima, contrastando com outras zonas do país onde, apesar da chuva, as pessoas votavam. Havia esperança de melhoria do tempo.

O secretário, então, usou o seu telemóvel para ligar à esposa, garantindo pelo menos um voto para a tarde. Seguindo o exemplo, os outros membros da mesa e delegados (exceto o do p.d.e., que não tinha família na capital) ligaram para os seus familiares. As respostas foram semelhantes: ou esperavam que a chuva parasse ou planeavam votar à tarde. Apenas o vogal que fora à porta voltou contente, pois a falta de resposta em casa indicava que a sua família já estaria a caminho.

A virada inesperada: afluência massiva às urnas

O primeiro eleitor, um homem idoso, chegou quase uma hora depois, contrariando a expectativa do vogal da porta. A partir daí, os eleitores começaram a aparecer, mas a um ritmo muito lento, a conta-gotas, sem entusiasmo. A fila nunca se formava. O delegado do p.d.m. insistiu na previsão de abstenção maciça. Perto do meio-dia, o vogal da porta anunciou que a chuva diminuíra e o céu clareava, mas a afluência não aumentou significativamente.

Familiares dos membros da mesa e alguns políticos locais votaram, atraindo brevemente a atenção da imprensa. Um jornalista questionou o presidente sobre a baixa afluência, mas este manteve uma visão otimista, esperando uma recuperação à tarde. A esposa do secretário votou às três e meia da tarde.

Inesperadamente, às quatro horas da tarde, uma maré de eleitores começou a dirigir-se às assembleias de voto por toda a cidade. Milhares de pessoas, de todas as idades e condições, saíram simultaneamente de casa para votar, algumas necessitando de ajuda devido às inundações persistentes. Os jornalistas, surpreendidos, tentavam obter explicações para esta súbita afluência massiva, mas as respostas eram evasivas ou agressivas. Ninguém conseguia explicar por que decidiu sair exatamente às quatro horas.

Os comentadores televisivos mudaram o tom, elogiando o civismo da população. O governo e os partidos políticos emitiram declarações congratulatórias. As filas tornaram-se enormes, dando a volta aos quarteirões.

Resultados chocantes: a vitória esmagadora do voto em branco

A votação teve de ser prolongada por duas horas e meia para acomodar todos os eleitores. A esposa do presidente da mesa número catorze conseguiu votar, sentindo uma sombra de felicidade antiga ao reencontrar o marido. O escrutínio terminou depois da meia-noite, revelando um resultado desconcertante.

Os resultados foram anunciados:

Os votos válidos não chegavam a vinte e cinco por cento... Pouquíssimos os votos nulos, pouquíssimas as abstenções. Todos os outros, mais de setenta por cento da totalidade, estavam em branco.

O resultado causou estupefação, troça e sarcasmo em todo o país. Os municípios da província, onde a eleição decorrera normalmente, ridicularizaram a presunção da capital. A agitação política tomou conta da cidade, com a pergunta sobre o que aconteceria numa eventual repetição das eleições a ser sussurrada por todos.

Repetição das eleições e a declaração do estado de exceção

Surgiram opiniões divergentes sobre como proceder. Alguns defendiam ignorar o resultado e manter o p.d.d. no poder municipal, adiando novas eleições. Outros insistiam no cumprimento da lei, que previa a repetição das eleições oito dias depois em caso de catástrofe natural (o temporal inicial). Os partidos adotaram posições cautelosas: o p.d.d. confiante na sua posição, o p.d.m. exigindo garantias impossíveis para a normalidade dos resultados, e o p.d.e. expressando esperança numa nova etapa política.

O primeiro-ministro anunciou na televisão a repetição das eleições no domingo seguinte, apelando à dignidade e ao decoro dos eleitores da capital.

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Primeiro-ministro — homem; chefe do governo; figura central na resposta política à crise dos votos em branco; toma decisões cruciais (estado de exceção, sítio, retirada).

Ele mencionou uma investigação em curso sobre as causas dos resultados desconcertantes e ameaçou com a declaração do estado de exceção caso a situação se repetisse, convocando os habitantes a um exame de consciência, referindo-se aos votos em branco como um golpe.

...aqueles votos em branco, que vieram desferir um golpe brutal contra a normalidade democrática em que decorria a nossa vida pessoal e colectiva, não caíram das nuvens nem subiram das entranhas da terra...

A segunda eleição: vigilância e silêncio dos eleitores

No domingo da repetição eleitoral, sob um céu límpido, os eleitores dirigiram-se às urnas desde cedo, formando longas filas. No entanto, a atmosfera era de tensão e vigilância. Espiões profissionais e voluntários misturavam-se nas filas, equipados com gravadores, tentando captar conversas que revelassem intenções de voto. Carros com câmaras de vídeo e microfones de alta sensibilidade circulavam, registando não só palavras, mas também emoções.

Apesar da vigilância apertada, os espiões captaram apenas conversas banais sobre o tempo, a família ou o pequeno-almoço. Frases ambíguas eram analisadas minuciosamente, mas sem resultados concretos. Os eleitores, quando abordados pelos responsáveis das sondagens à boca da urna, respondiam com um silêncio impenetrável, recusando-se a revelar o sentido do seu voto, mesmo para fins estatísticos. Esta recusa coletiva e silenciosa confundia as autoridades e a comunicação social.

Novo resultado avassalador do voto em branco e a reação do governo

A contagem dos votos confirmou os piores receios do governo. O primeiro-ministro, com o rosto demudado, anunciou os resultados na televisão: p.d.d., oito por cento; p.d.m., oito por cento; p.d.e., um por cento; abstenções e nulos, zero; votos em branco, oitenta e três por cento.

Reconhecendo o agravamento da tendência, o primeiro-ministro afirmou que a legitimidade do governo não fora posta em causa, por se tratar de uma eleição local. No entanto, anunciou a intenção de solicitar ao parlamento e ao chefe de estado a declaração do estado de exceção na capital para investigar a fundo os "anómalos acontecimentos" e punir os responsáveis. Convocou novamente os habitantes a um exame de consciência, comparando a situação à parábola do filho pródigo e prometendo perdão em caso de arrependimento.

Investigações e interrogatórios: a busca por respostas

O governo, liderado pelo ministro do interior, iniciou uma vasta operação de investigação. Agentes infiltraram-se na população e analisaram as gravações feitas durante a segunda eleição. Quinhentos cidadãos, selecionados com base em frases consideradas suspeitas (embora muitas fossem banais), foram levados para interrogatório.

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Ministro do interior — homem; membro do governo responsável pela segurança e investigação; planeia e executa as operações de espionagem e repressão; dialoga com o PM e outros ministros.

Os interrogatórios, focados em perguntas repetitivas e capciosas, não produziram os resultados esperados. Os suspeitos negavam ter votado em branco ou invocavam o seu direito legal:

Ninguém pode ser, sob qualquer pretexto, obrigado a revelar o seu voto nem ser perguntado sobre o mesmo por qualquer autoridade.

O ministro do interior decidiu então usar o polígrafo (detector de mentiras) nos quinhentos detidos. No entanto, um incidente caricato envolvendo um jovem agente e uma detida demonstrou a ineficácia do aparelho: mesmo pessoas inocentes poderiam apresentar reações fisiológicas de culpa sob pressão ou simples menção da palavra "branco". A palavra "branco" começou a ser evitada na linguagem quotidiana, substituída por perífrases.

Com o passar dos dias... começou a notar-se que a palavra branco, como algo que se tivesse tornado obsceno ou mal soante, estava a deixar de ser utilizada, que as pessoas se serviam de rodeios ou de perífrases para substituí-la.

O estado de sítio e a retirada do governo da capital

Perante o fracasso das investigações e a ineficácia do estado de exceção (que pouco mudara a vida dos cidadãos, pouco habituados a exigir os seus direitos), o governo decidiu endurecer as medidas. Foi declarado o estado de sítio, com recolher obrigatório, encerramento de espetáculos, patrulhamento militar intensivo e proibição de ajuntamentos e de entradas e saídas da cidade. O resto do país foi isento destas medidas, acentuando a humilhação da capital.

O ministro da defesa defendia esta abordagem mais dura. No entanto, o estado de sítio rapidamente se revelou impraticável e caótico, gerando enormes problemas logísticos (abastecimento de comida, medicamentos, combustível) e burocráticos, afetando inclusivamente membros do próprio governo que residiam fora da cidade. A situação tornou-se alvo de anedotas sobre o "sitiante sitiado".

Apesar das dificuldades, a população da capital manteve a calma e a firmeza, sem conflitos internos significativos. O primeiro-ministro, percebendo a ineficácia do estado de sítio e temendo um impasse, revelou um plano radical: a retirada completa do governo, parlamento, exército e polícia da capital, deixando-a isolada e entregue a si mesma, esperando que o caos a levasse à submissão.

A retirada foi planeada em segredo e executada de madrugada. Enquanto as caravanas oficiais deixavam a cidade, os habitantes acenderam todas as luzes das suas casas, numa despedida silenciosa e luminosa que inquietou profundamente o primeiro-ministro.

A cidade sitiada: a vida sob cerco e a reação popular

Na manhã seguinte à retirada do governo, o chefe de estado dirigiu-se à nação, culpando os habitantes da capital pela situação, acusando-os de deserção e subversão. Anunciou que a cidade ficaria sem lei, entregue a si própria, prevendo o caos e a tirania interna como consequências inevitáveis do seu "erro", e alertou para os perigos do voto em branco.

Votar em branco é um direito irrenunciável, ninguém vo-lo negará, mas, tal como proibimos às crianças que brinquem com o lume, também aos povos prevenimos de que vai contra a sua segurança mexer na dinamite.

Contrariando as previsões, a cidade reagiu com calma e organização. As ruas encheram-se de gente, mas num ambiente quase festivo. Quando os trabalhadores da limpeza, instigados pelo governo, entraram em greve, as mulheres da cidade saíram à rua com vassouras e limparam as suas testadas, num gesto de assunção de responsabilidade. Os grevistas, envergonhados, voltaram ao trabalho dias depois, vestidos à civil.

O presidente da câmara municipal, inicialmente alinhado com o governo, entrou em conflito crescente com o ministro do interior, recusando-se a forçar os trabalhadores a retomar a greve e questionando a estratégia governamental.

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Presidente da câmara municipal — homem; inicialmente alinhado com o governo (p.d.d.), mas desenvolve dúvidas e conflitos com o ministro do interior; abandona o cargo após o atentado.

Sentindo um mau presságio, o presidente da câmara saiu para observar a cidade. Tudo parecia normal, mas a sensação de ameaça persistia. Nessa noite, uma bomba explodiu na estação de metro, causando dezenas de mortos e feridos. Chocado e suspeitando da autoria do atentado (insinuando a responsabilidade do governo), o presidente da câmara abandonou o cargo.

O governo atribuiu o atentado aos "brancosos". Uma nova investigação policial foi iniciada, desta vez focada numa mulher que, segundo uma carta anónima enviada às autoridades (presidente, primeiro-ministro e ministro do interior), não teria cegado durante a epidemia de cegueira branca ocorrida quatro anos antes (narrada em "Ensaio sobre a Cegueira"). A carta insinuava uma ligação entre esse facto e a atual crise dos votos em branco.

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Mulher do médico — mulher; a única pessoa que não cegou durante a epidemia anterior; torna-se o foco da investigação policial como possível causa dos votos em branco; calma, inteligente.

Um comissário da polícia foi enviado secretamente à capital para investigar a mulher e o seu grupo de amigos (os sobreviventes da epidemia anterior). O comissário interrogou o autor da carta e os membros do grupo, incluindo a mulher do médico, que confessou ter matado um homem cego no passado para defender uma companheira de violação, mas negou qualquer envolvimento na questão dos votos em branco.

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Comissário (da polícia) — homem, 57 anos; lidera a investigação sobre a mulher que não cegou; entra em conflito moral com as ordens do ministro do interior; acaba por ser afastado.

Convencido da inocência da mulher quanto à conspiração política, mas pressionado pelo ministro do interior para encontrar provas de qualquer maneira, o comissário entrou em crise de consciência. Avisou a mulher do médico sobre os planos do governo de a usar como bode expiatório e sobre a iminente publicação da sua fotografia nos jornais, citando uma frase que o guiava:

Quando nascemos, quando entramos neste mundo, é como se firmássemos um pacto para toda a vida, mas pode acontecer que um dia tenhamos de nos perguntar Quem assinou isto por mim...

No dia seguinte, os jornais publicaram a fotografia, acusando a mulher de ser a "cabeça da conspiração". O comissário, desafiando as ordens, contactou um jornal dissidente e forneceu a sua versão dos factos, que foi publicada antes de o jornal ser apreendido. Cópias do artigo circularam pela cidade. Pouco depois, o comissário foi assassinado num jardim público por um homem enviado pelo governo.

O ministro do interior atribuiu publicamente a morte do comissário aos "subversivos", mas foi imediatamente demitido pelo primeiro-ministro, que assumiu também essa pasta. No dia seguinte, a polícia voltou à casa da mulher do médico e levou o marido para interrogatório. Pouco depois, um atirador profissional posicionado num terraço vizinho assassinou a mulher do médico e o seu cão quando ela veio à varanda.